Hitler 3º Mundo

20:29


José Agrippino de Paula, escritor, poeta, dramaturgo, performático e cineasta, faleceu em 2007 e apenas depois de sua morte foi devidamente visto pela crítica. Seu filme Hitler terceiro mundo jamais foi exibido comercialmente e é um caso exemplar de arte das bordas. Produzido no limite do factível, com sobras de rolos, recauchutagem, camaradagem e improvisações de última hora. Há sequências com defeitos gritantes de áudio, de continuidade, de luz e montagem. Mais que opção estilística, a estética precária foi imposta pelas circunstâncias. Neste trabalho, o filme Hitler terceiro mundo será relacionado ao seu contexto de ditadura militar e ao Cinema Marginal nesse período.

Hitler terceiro mundo foi filmado em 1968, no auge da ditadura militar brasileira, coincidindo com a instauração do AI-5, marco da repressão. O filme, rodado na clandestinidade, caracterizava-se dentro do conjunto heterogêneo de filmes realizados entre o final dos anos 1960 até meados da década seguinte conhecido como “Cinema Marginal”. Os diretores do dito “Cinema Marginal” rompiam, no campo artístico, com o Cinema Novo sobretudo na sua tentativa de aprofundar as experiências estéticas através do cinema – diferente dos cinemanovistas, que buscavam maior aceitação por parte do público. Os filmes traziam, em suas temáticas, questões das classes a que pertenciam o realizador e o público, com temas mais urbanos da classe média. De acordo com Ismail Xavier: “O cineasta quer a conquista do público, mas exorciza na tela um ressentimento em que se coloca diante do mesmo público numa linha de agressão”. (XAVIER, p. 63. 2006) Um cinema que buscava maior liberdade de câmera, de microfone, de montagem. Os filmes do Cinema Marginal, também nesse contexto do cinema moderno, tinham como características o cinema de autor e filmes de baixo orçamento, marcados pelos debates em torno do nacional-popular e da problemática do realismo. Poesia e experimentação, revolução e escracho: o cinema brasileiro dos anos 60 e 70 viveu uma época de efervescência estética e política. No entanto, um cinema que foi extremamente discriminado, boicotado, podado. Ao ser indagado, em uma entrevista sobre as possíveis causas dessa repressão, Rogério Sganzerla, um dos mais importantes cineastas desse movimento, responde: “É uma casta que não quer ver tocada nenhuma de suas concepções e também pelo fato de eu procurar romper com o coleguismo cultural e fazer um tipo de cinema que é renovado a cada instante, acompanhando a mutação que tem o homem brasileiro. Tentei relacionar a mente com a revolução no sentido de que qualquer revolução começa internamente.” (CANUTO, 2007, p.91)

A criação da Embrafilme, nesse contexto de ditadura militar, provocou ainda mais o atrofiamento da indústria cinematográfica pelo atrelamento ao Estado; tratava-se de um cinema que não se permitia reinventar. “Criou-se esse pacto sinistro, a Embrafilme, que deu no pior de tudo, em uma padronização, uma imagem conclusiva do cinema brasileiro, um processo de mediocrização, de boçalização, de controle das forças que se deveria deixar que circulassem. Foi feito um cordão sanitário. A política de filmes tornou-se a política de alguns poucos, que tentava encontrar uma fórmula de filme que desse dinheiro”, (CANUTO, 2007, p. 141) 
diz Julio Bressane.

Se o sentimento do artista, neste contexto, é de impotência, a resposta parece ser a ironia absoluta, o humor negro do lema do “Bandido”: “quando a gente não pode nada, a gente avacalha e se esculhamba”. Esculhamba-se não só no lema, mas na estética, na linguagem, no tema e em um tipo de cinema como um todo.

Para um Brasil subdesenvolvido, pensavam os diretores do Cinema Marginal, um cinema assumidamente subdesenvolvido. O filme Hitler terceiro mundo pode ser assumido como uma resposta à repressão na linha agressiva do desencanto radical; sua rebeldia elimina qualquer dimensão utópica e se desdobra em uma encenação composta de vômitos, gritos e sangue. Feito em caráter de urgência, no auge da ditadura militar, suas imagens, vistas hoje, são de uma atualidade aterrorizante.


As imagens de Hitler terceiro mundo são fortes, perturbadoras, inquietantes e se compõem de episódios desarticulados. O recurso alegórico da figura do que seria um Hitler do terceiro mundo, um Hitler subdesenvolvido e seus seguidores, parece simbolizar a ditadura militar brasileira que acontecia nesse período em que foi realizado o filme. O fio condutor do filme seria a ascensão de um imitador de Hitler ao poder em um país subdesenvolvido de terceiro mundo. 

No entanto, o filme surpreende ao partir para uma estética inteiramente própria, com cenas bizarras e não realistas que muitos comparam com filmes de ficção científica. Os personagens aparecem em trânsito, como aparecem com frequência no Cinema Marginal tal como nos filmes de Rogério Sganzerla, Sem essa, Aranha, Mulher de todos, entre outros. Os personagens de Hitler terceiro mundo transitam pelas ruas de São Paulo em uma “desnarrativa”. Uma perambulação quase desnorteada que articula os personagens que incorporam figuras esdrúxulas e sem nome representando o nazi-fascismo, em usual paródia de Hitler.

 Ao desenvolver a trajetória do ditador nazista ao poder, José Agrippino cria uma narrativa não-realista e fragmentária, contrapondo tanto aliados do ditador, como o samurai que circula pelas favelas, quanto de seus opositores, como o rapaz e a moça da sequencia do início do filme que são carregados, de quatro, como uma peça de oficina enquanto a voz off teoriza sobre a tortura.


A estética do grotesco aponta Jô Soares como uma mistura de samurai, gueixa e lutador de sumô, uma criatura monstruosa que surge no cotidiano de crianças de uma favela paulistana, causando curiosidade e rebuliço. A cena é marcante quando este personagem coloca um enorme número de crianças dentro de uma kombi, crianças que variam entre risos de inocência e ignorância e choros – algo que nos remete aos vagões que partiam para os campos de concentração.

Em Hitler terceiro mundo comparecem o icônico, o absurdo, o surreal – aproxima-se dos longas de enredo desconexo e sem discurso estruturado, como Bang bang, de Andrea Tonacci, com uma atmosfera delirante, tão oportuna dos tempos em que surgem. O filme é iniciado com a imagem de uma máquina de escrever que digita os créditos do filme seguido pelos sons de foca, batuque de terreiro, algo que parece ser uma voz distorcida e um som de helicóptero no início do filme. 

Assim como em Terra em transe, o som das cenas parece trocado, dificilmente é sincronizado e o que se passa em uma cena quase sempre não tem ligação com o som, apresentando o que poderia se tratar de um distanciamento crítico. Os diálogos são em off e sempre entrecortados por sons de animais, música experimental, e batuques de terreiro. O som é um personagem à parte, que comenta as imagens como se fosse um personagem externo, talvez remetendo ao que seria provocado pela “voz de Deus”, a voz que tudo sabe e tudo vê, tão própria dos ditadores. O filme faz uma utilização absolutamente não-realista do som.

 A narração feita no início do filme, quando o pneu do carro está furado e eles não conseguem sair devido a intensa quantidade de carros que passam acelerados e que não param para socorrê-los parece mostrar uma questão com a massa, com uma massa que vai em um fluxo, e de um sentimento claustrofóbico que é gerado no personagem e que poderia ser estendido à situação do cineasta, um sentimento de impotência, de fraqueza perante aquele contexto de repressão da ditadura, e que, no entanto, muitos parecem nem parar para olhar. 


José Agrippino parece não se preocupar com a óbvia censura que sofreria; não adere a qualquer ímpeto alegórico e ao levar sua objetividade ao extremo passa forte pela ironia pelo humor negro. Em determinada sequência, três homens artificialmente peludos se comportam como macacos dentro de uma espécie de jaula, circulando ao redor de um corpo que parece estar morto; a disposição da cena lembra cenas de tortura e esta é encerrada com os supostos macacos reverenciando Hitler. 

Na cena em que o Coisa é capturado por policiais, a câmera aguarda a personagem dentro do camburão; neste plano, desconfiamos que todos vão em cana, afinal, já vigorava o AI-5. Mas a equipe é liberada, o show e o filme têm que continuar. A narrativa fragmentária de Hitler terceiro mundo, os gritos, barulhos de animais, os ruídos, os ângulos distorcidos onde a câmera vira e revira, fazem com que entremos em vertigem diante de tanta vitalidade e força expressiva.

REFERÊNCIAS 
XAVIER, Ismail. O Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001. (Coleção Leitura) 
Cinema Marginal Brasileiro, realização: Lume Filmes e Heco Produções. 
CANUTO, Roberta (org.) Encontros Rogério Sganzerla. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007.

Assista Hitler 3º Mundo em nosso canal no youtube





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