Helena Ignez, musa do cinema novo

14:06


Atriz da vanguarda cinematográfica brasileira, Helena Ignez dirige a continuação de “O Bandido da Luz Vermelha” Na mitologia grega, houve uma Helena que, por tamanha beleza, provocou uma guerra. Na mitologia do cinema brasileiro, há uma Helena que, além de muito bela, foi a protagonista das experimentações da sétima arte no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Como disse Nelson Rodrigues, “não é por acaso, não é por capricho, que uma mulher se chame, ao mesmo tempo, Helena e Ignez”. Extravagante personagem das vanguardas cinematográficas de Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e Glauber Rocha, há 30 anos a baiana surgia de biquíni – qual fera oxigenada em uma época na qual descolorir os cabelos era ultrajante – na capa da revista O Cruzeiro. Hoje, com 67 anos, ela entra em sua produtora, a Mercúrio, no centro da cidade de São Paulo, de cabeleira longa e vermelha. Em meio a diversos cartazes que estampam seu rosto jovem, ela veste uma calça jeans folgada, tem os olhos cansados e fala macio – herança de sua terra natal, Salvador. Não por acaso, nem por capricho que, com mais de 30 filmes no currículo, ela continue atuando, dirigindo e produzindo. O cansaço deve-se à pré-produção do filme Luz nas Trevas – A Revolta de Luz Vermelha, dirigido por Helena. O longa é a continuação do desconcertante O Bandido da Luz Vermelha, lançado em 1968 e dirigido por Rogério Sganzerla, de quem foi esposa até 2004 (ano de falecimento do cineasta), e a quem invariavelmente se refere com carinho. Foi n’O Bandido da Luz Vermelha que Helena surgiu com um novo estilo de atuar, debochado e extravagante, com sua beleza violenta irrompendo na tela, sendo impossível falar de Cinema Marginal – e, afinal, de cinema brasileiro – sem citar a sua musa escandalosa.

A mulher do padre

Filha da alta sociedade de Salvador, Helena Ignez cursava direito e teatro na Universidade Federal da Bahia, em 1959. No curso de teatro e dança, conheceu os grandes clássicos. Na faculdade de direito, conheceu um repetente que usava roupas esquisitas e se chamava Glauber Rocha: paixão à primeira vista. Junto às jóias de jade que ganhou ao ser a vencedora do concurso de glamour girl, Helena conseguiu financiamento para o curta-metragem O Pátio, debut de Glauber Rocha, no qual, pela primeira vez, Helena espreguiçou seu corpo bonito a 24 quadros por segundo. De O Pátio – que fez com que Helena largasse o curso de direito de vez – a esposa de Glauber foi para o palco e, de muitos palcos, para a tela grande atuar em seu primeiro longa-metragem, A Grande Feira, de 1961, do cineasta veterano Roberto Pires, e em seguida, O Assalto ao Trem Pagador, de 1962, de Roberto Farias. Nessa época, Helena viveu uma rotina tresloucada entre o Rio de Janeiro e São Paulo, entre os palcos e as telas – tanto do cinema, quanto da tevê. A atriz também se destacou na TV Rio, na Excelsior e na Record, tornando-se a queridinha principalmente dos programas de musicais devido a seu estilo solto e autêntico, bem contrário ao das meninas comportadas que ainda traziam os anos 1950 nos trejeitos. Em meio ao turbilhão da vida de estrela, agora separada e sem a guarda da filha Paloma, em 1966 Helena reencontrou o cineasta que, há alguns anos, lhe havia falado que sua nuca era um objeto cênico lindíssimo: Joaquim Pedro de Andrade. Inspirado por um poema de Drummond, Joaquim Pedro levou Helena e uma equipe para uma temporada no interior de Minas Gerais para as filmagens de O Padre e a Moça, que rendeu à mulher da bela nuca uma indicação ao prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim e diversos prêmios pelo Brasil.

A mulher do bandido

 Em 1968, Helena aceitou um convite para atuar num longa-metragem em São Paulo, onde se encontrou com um jovem de 22 anos chamado Rogério Sganzerla. Como afirmou o crítico de cinema Ruy Gardner, “tudo que o corpo-de-atriz de Helena Ignez esperava para se tornar deparou-se com tudo que o gesto-de-diretor de Rogério Sganzerla gostaria de exprimir”, resultando numa parceria artística e num casamento de vida inteira. O filme era O Bandido da Luz Vermelha, o “faroeste do Terceiro Mundo”, como costumava chamá-lo Rogério. Nele, Helena Ignez interpreta a belíssima prostituta Janete Jane, construindo nesse personagem seu estilo de atuar depravado, desregrado, desmoralizado, devasso, e transgredindo o modo de interpretar no Brasil, tornando-o mais espontâneo. Com suas saias curtíssimas e o cabelo loiríssimo desgrenhado, Janete Jane desfilava uma Helena Ignez e sua persona definitiva de mulher da desordem, rompendo com a interpretação naturalista, lançando mão de um gestual anárquico e de uma sensualidade arrebatadora que caracterizava aquele cinema independente. A partir daí, tornou-se comum vê-la praguejando, chutando, dançando, em papéis que traziam consigo sempre um aposto – Janete Jane, a Escandalosa; Ângela Carne e Osso, a Rainha dos Boçais; Sônia Silk, a Fera Oxigenada; Betty Bomba, A Exibicionista.

A mulher de todos

 Segundo o crítico de cinema Jean-Claude Bernadet, A Mulher de Todos (1969) – em que Helena protagoniza a anti-heroína Ângela Carne e Osso – é o melhor filme brasileiro de todos os tempos. Neste filme visceral dirigido por Rogério Sganzerla, há sempre um diálogo com a explosão de Luz Vermelha, para quem “quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha – avacalha e se esculhamba!”, Ângela Carne e Osso também avacalha – e se esculhamba em puro desbunde pop. Helena transfigura-se na pele da mulher livre, irascível, insubmissa, perseguida pela câmera que, imantada, capta todas as suas intempéries. À frente de qualquer tempo, Ângela é a mulher do século XXI – como o foi dito pela própria personagem no filme. E Helena concorda, citando que as mulheres estão chegando ao “estágio Ângela Carne e Osso”. “Você vê que em todos os lugares as mulheres estão mais presentes que os homens. Existe um comportamento feminino que será o comportamento do futuro: da delicadeza, da sutileza, em detrimento desse jeito excessivamente testosterona da guerra, do domínio”, diz Helena. E continua: “Entramos na era de Aquário, com esperanças de renovação, de um mundo mais feminino – no sentido positivo do feminino, porque, na verdade, o homem e a mulher são parte da mesma humanidade. Mesmo que essa seja uma questão sempre muito presente na minha vida, eu não divido, não tenho esse racismo sexual. Eu acho que o homem e a mulher têm que andar juntos, mas é um momento em que a mulher tem que ter essa consciência de que ela pode muito mais ajudar o homem a enxergar a vida do que eles a nós”.

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A mulher do barulho 

No ano seguinte à loucura de A Mulher de Todos, chegou a Belair e suas “subproduções”. Os filmes da produtora criada por Helena, Sganzerla e o amigo Júlio Bressane, em 1970, integraram um momento de radicalização total daquele cinema de invenção, udigrudi, como havia sido batizado numa versão em língua portuguesa de underground. Da Boca do Lixo paulistana ao Beco da Fome carioca, Helena atuou em seis dos seis filmes baratíssimos da Belair: Copacabana, Mon Amour; Sem Essa, Aranha; Betty Bomba, A Exibicionista (de Sganzerla); A Família do Barulho; Cuidado, Madame e Barão Olavo, O Horrível (de Bressane). Os filmes udigrudis eram tão undergrounds que no início nem passaram pela censura. Todavia, fazer um cinema tão livre num país em que a repressão consolidava-se como combate às artes foi o preço a ser pago pela Belair, que se manteve apenas durante seis longas e sete meses, quando Helena, Sganzerla e Bressane viram-se obrigados a deixar o País com seus filmes nas mãos, ainda em latas, depois do aviso de um amigo de que eles estavam na mira dos militares. 

A mulher do mundo 

Em Londres, a musa do cinema caiu no rock’n’roll e participou do momento mais efervescente das guitarras elétricas, indo aos shows de Jimi Hendrix, Rod Stewards e muitos outros – confessando que, no fundo, tem alma de roqueira e que gosta de dançar ao som de Stones e ouvir clássicos do blues, como Muddy Waters. Nos anos 1970, dividida entre o Brasil e o exterior, Helena não parou de atuar, e também filmou na Europa, Estados Unidos e África. Nesse período, a atriz também deu à luz às suas duas filhas com o cineasta, e afastou-se das telas a fim de tornar-se personagem de si mesma. A partir daí, Helena começou a estudar filosofia oriental e abraçou o taoísmo, tornando-se hare krishna nos anos 1980. Morou com as filhas em templos no Brasil e no exterior, e também serviu como monja e fez leitura de mãos. Durante o período de reclusão, participou de algumas produções no teatro, e lecionou para crianças da comunidade onde viveu por muitos anos ao pé da Serra da Mantiqueira. Encantada pelo princípio hare krishna de que “a grande alegria da alma é servir”, hoje ela divide sua espiritualidade com seu trabalho e não segue nenhuma religião específica, embora adote princípios aprendidos nos anos de estudo.


A mulher do presente

Na década de 1990, Helena dedicou-se mais aos palcos, rodando o País com diversas peças. Entre as mais recentes, Os Sete Afluentes do Rio Ota (de Monique Gardenberg), que esteve em cartaz durante quatro anos, e Savannah Bay, montagem de Marguerite Duras, na qual atuou ao lado da filha Djin e foi dirigida mais uma vez por seu marido Rogério. Além disso, Helena também passou uma temporada como diretora com a peça Cabaret Rimbaud. No cinema, entre outros projetos, atuou na obra derradeira de seu companheiro Rogério Sganzerla: O Signo do Caos, de 2003. Sua última participação como atriz foi no longa de José Mojica Marins, A Encarnação do Demônio (2008). Como diretora, a musa também realizou dois curtas – Reinvenção da Rua (2003) e A Miss e o Dinossauro (2005) –, além do longa Canção de Baal, que estreou no ano passado. Não por acaso, o primeiro longa-metragem dirigido pela atriz mais brechtiana de todo o cinema brasileiro é uma livre adaptação de Brecht. “Canção de Baal, pra mim, é um amor. E eu não o vejo somente com olhos de realizadora, mas com olhos de crítica também. Aliás, a crítica se manifestou de uma maneira surpreendente, tanto aqui no Brasil como no exterior (o filme também foi exibido em Portugal), o que me deu inclusive a sensação de que eu era amada. Acho que houve uma compreensão muito grande sobre esse filme”. No musical, há reverência e referência constantes ao pensamento de Rogério Sganzerla, com uma câmera que procura sempre o inusitado e o diferente, de visual deslumbrante que adota uma narrativa não-convencional e lírica, numa fusão profunda de teatro e cinema. A musa da contracultura volta ao seu embate homem e mulher frisando que o filme é uma paródia sobre o machismo, “esse cancro da sociedade”, usando Brecht. Com orçamento zero, mas liberdade e transcendência renovadoras, o filme será premiado em setembro, no Festival de Trieste (Itália). Luz nas Trevas – A Revolta de Luz Vermelha é o projeto que atualmente consome Helena toda. O longa – cujas filmagens começaram neste mês – conta com um elenco encabeçado por Ney Matogrosso, que será Luz Vermelha (que originalmente foi interpretado pelo ator Paulo Villaça, morto em 1992).

Helena mostra brilho nos olhos ao falar de sua imensa satisfação com o projeto: “Eu acredito neste projeto completamente, e no momento ele é a coisa mais importante que eu posso fazer, é uma fonte de felicidade. A origem dele não é minha, é de Rogério, e isso faz com que ele se torne ainda mais forte e interessante para eu levar em frente”.

A mulher do futuro Além das diversas viagens que faz para divulgar a obra de Sganzerla – uma de suas prioridades, sendo que também é responsável pela restauração de seus filmes – Helena está constantemente em turnê para receber prêmios e participar de mostras que levam seu nome. Testemunha ocular e sensorial de todas as transformações do cinema brasileiro moderno, Helena afirma que a sétima arte no Brasil é só para os eleitos, mas concorda que finalmente sua importância está sendo reconhecida. Decepcionada com os filmes brasileiros da atualidade, a atriz lamenta a retomada do cinema nacional, ocorrida a partir de 1995 – uma retomada fraca, segundo ela. “O cinema brasileiro é subjugado pela televisão. Além disso, é muito ligado a essa ideia de festivais: os filmes são feitos para ganhar prêmios, e o público é uma vergonha, porque foi mal educado e estragado pela televisão”, dispara. Para ela, há de se ter uma retomada de verdade, pois hoje um filme brasileiro bom é como um filme americano ruim. “Estou esperando, torcendo, para que venha uma grande coisa, mas ainda não estou vendo. Para mim, o grande cineasta brasileiro hoje é Júlio Bressane”, completa. Após décadas de trabalho, Helena defende o mesmo ideário no qual a liberdade do pensamento, a transgressão e a desconstrução dos valores constituem-se como princípio criativo e válvula impulsionadora da arte. “Eu faço parte disso, dessa liberdade do movimento que o Rogério abriu e foi pioneiro. Eu faço parte desse cinema de invenção, me sinto filiada a ele completamente e, não tem jeito, até quando eu existir estarei renovando e mexendo em coisas, indo pra frente, é a minha natureza. Eu não consigo ser diferente. Para mim, a idade e o tempo não significam acomodação: de jeito algum, ao contrário, significam que a gente tem mais ferramentas, mais sabedoria pra renovar e pra melhorar”. Como sua personagem proclamava em Sem Essa, Aranha, para Helena Ignez, ainda é preciso pecar em dobro. (Publicado na Revista Brasileiros número 20 – março/2009 e reproduzido na Revista Projeções)

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