Deus, o Diabo e Glauber Rocha

16:41

Glauber Rocha
Já faz três dias. É muito tempo pra quem viveu na guerra. O corpo de Maria Bonita inchou e apodreceu, os bichos agora estão comendo os olhos bonitos dela. Morreu Maria, mas Lampião está vivo. Virgulino acabou na carne, mas o espírito está vivo. O espírito está no meu corpo e agora juntou os dois. Cangaceiro de duas cabeças, uma por fora, outra por dentro. Uma matando e a outra pensando. Agora eu quero ver se esse homem de duas cabeças não pode consertar esse sertão. É o gigante da maldade comendo o povo pra engordar o governo da república.

Corisco, personagem de Deus e o Diabo na Terra do Sol

Há 50 anos, a saga de Manuel e Rosa pelo sertão do Nordeste brasileiro chegava às telas e firmava o Cinema Novo como um dos principais representantes da contraposição à cinematografia Hollywoodiana, vigente até então.
Conheça um pouco sobre o diretor Glauber Rocha, criador de Deus e o Diabo na Terra do Sol e principal nome do movimento.

Glauber Rocha filmando Cinema em Transe com Danusa Leão. 1966.
Antecedentes

O cenário da cinematografia brasileira na segunda metade do século XX estava limitado a dois grandes estúdios que detinham a maior parte da produção nacional da época. De um lado, a carioca Atlântida Cinematográfica, com suas comédias simplistas, inocentes, repleta de números musicais, sendo a maioria tendo como principais nomes do elenco Oscarito e Grande Otelo. De outro, a paulista Companhia Cinematográfica Vera Cruz, cujos filmes se diferenciavam da temática da Atlântida, com conteúdos mais sérios, como dramas e policiais. A produtora era detentora de uma cadeia de produção cujos investimentos permitiam produções com o maior apuro técnico disponível no mercado, o que fazia a Vera Cruz ser a principal concorrente da produtora carioca. 
As diferenças e rivalidade entre esses dois grandes estúdios eram claras. Porém, um fator predominante nos filmes de ambos os estúdios se tornava evidente há medida em que os filmes eram lançados: a linguagem narrativa, que seguia à risca o modelo tradicional Hollywoodiano. Entretanto, a Atlântida conseguia driblar tal possível “defeito” narrativo, ao criar roteiros com um leque de personagens que, dificilmente poderiam ser representados em outras culturas: sambistas, bicheiros, malandros cariocas, meninos de rua e vários outros protótipos de personagens. Já a Vera Cruz, que importou grande parte de sua mãe de obra da Europa, reproduzia em seus filmes um Brasil equivocado e lotado de estereótipos. Exemplo máximo deste tipo de situação foi o lançamento de “O Cangaceiro”, em 1953. Dirigido por Lima Barreto, o filme fez sucesso mundial, sendo ganhador de Melhor Filme de Aventura no Festival de Cannes daquele mesmo ano. Porém, algumas de suas características, como figurinos e fotografia, remetem muito mais aos faroestes norte-americanos do que à realidade brasileira. 

A ocasião preliminar que iniciou o abalo das estruturas e a ameaça da supremacia da Atlântida e da Vera Cruz se deu em dois Congressos de Cinema realizados no Rio de Janeiro e em São Paulo, nos anos de 1952 e 1953. As discussões giravam em torno do futuro do cinema nacional e seus problemas, como distribuição problemática em detrimento dos filmes norte-americanos, falta de investimentos em equipamentos e mão de obra especializada.
Paralelo a isso, os dois estúdios começam a dar sinais de fraqueza. A Atlântida perde parte do seu público e de seu elenco para a TV, recém chegada no país. Além disso, a repetição de histórias não surte o mesmo efeito de antes e o estúdio entra em crise. A Vera Cruz, por sua vez, se vê em dívidas bancárias ao qual se submeteu para cobrir os altos orçamentos de seus filmes e os cachês de contratos arbitrários de suas estrelas. Ao final dos anos 1950, ambos os estúdios fecham suas portas, deixando para trás um imenso e rico acervo de filmes para a filmografia nacional.

Origem

Durante os dois Congressos de Cinema realizados participaram uma classe de militantes do cinema nacional, provenientes de cine-clubes, que viriam a se tornar os diretores que comporiam o quadro de cineastas cujas propostas eram criar um cinema brasileiro popular e autoral e, acima de tudo, revolucionário. A partir dos anos 1960 nomes como Cacá Diegues, Ruy Guerra, Roberto Santos, Joaquim Pedro de Andrade e Leo Hirszman trabalhavam a pleno vapor e lançavam filmes com cada vez mais caráter humanístico e social. Porém, o pioneiro do movimento foi o paulista Nelson Pereira dos Santos, ao lançar, em 1955, Rio 40 Graus. O filme conta a história de meninos moradores dos morros cariocas que sobrevivem vendendo amendoim nos pontos nobres da cidade. A vida dos meninos é entrelaçada pelos vários personagens que cruzam suas vidas. Contando como referências o Neo-Realismo italiano – movimento cinematográfico cujo objetivo era mostrar as mazelas sociais pelo qual a Itália passava após a II Guerra Mundial, com características próprias como, o uso de luz natural, atores não profissionais, locações fora de estúdios – o diretor consegue expor com o máximo de realismo o cotidiano brutal daquelas crianças. Alex Viany, em Introdução ao Cinema Brasileiro (Editora Revan, 1993), ressalta as características desse novo grupo formado, denominado cinema novista:

[...] cada novo cineasta trazia para ele não só o seu talento pessoal, sua personalidade própria, não só sua referências estrangeiras particulares [...], mas principalmente um intenso amor pelo cinema e uma determinação ainda mais firme de encontrar uma linguagem cinematográfica verdadeiramente capaz de refletir os tremendos problemas sociais e humanos do país.
Com essa multiplicidade de talentos, o movimento lança filmes cada vez mais ousados, desafiando o status quo, como o filme Os Cafajestes, de Ruy Guerra, lançado em 1962, que obtém a primeira cena de nudez frontal do cinema brasileiro, com a personagem da atriz Norma Bengell na praia, sabotada pelos malandros vividos por Jece Valadão e Daniel Filho. Estava criado um novo tipo de cinema no Brasil, nunca antes visto e que em breve obteria reconhecimento internacional.


Auge: Glauber Rocha

Com o sistema de produção industrial da Vera Cruz e da Atlântida superado, o cinema nacional encontrava cada vez mais novos horizontes e admiradores mundo afora. Responsável por tal façanha tem um nome: Glauber de Andrade Rocha, ou como ficou conhecido popularmente, Glauber Rocha. Baiano nascido em Vitória da Conquista, em 1939, lança seu primeiro filme, Barravento, em 1962. De cara, o espectador se depara com uma aparentemente de fácil assimilação. Porém, o diretor já afirma seu estilo ao deixar claro que seu cinema não é fácil. Glauber não oferece respostas prontas, não dá colher de chá para se fazer entender. A história de Barravento acompanha um jovem que volta para sua antiga aldeia de pescadores, após passar uma temporada fora da Bahia. Os moradores do local, adeptos do candomblé, entram em conflito com o jovem, que tenta a todo custo convencê-los da idoneidade da crença que tanto cultuam. Ao mesmo tempo, tenta se reaproximar de um antigo amor do passado, o que gera graves conseqüências para toda a aldeia. Desde seu título, “Barrevento”, tudo no filme é alegórico. O diretor narra sua história através dos mais puros elementos baianos, como rodas de samba, lutas de capoeira, rituais de candomblé – onde a cabeça de uma moça é raspada, por motivos que não falarei aqui, pois seria um spoiler -. Ao final, tratasse de um pequeno grande filme de um pequeno grande diretor, que faria sua obra-prima máxima dois anos depois,

“Deus e o Diabo na Terra do Sol”

Desta vez, tratando do conflito de posse da terra, abusos da Igreja Católica e guerras entre cangaceiros. Em pleno ano do Golpe Militar que arrancou a democracia do país, Glauber redescobre um Brasil até então inexplorado e desconhecido e escancara para todos os problemas sociais enfrentados pela população. Em razão disso, começa a ter problemas. Decide então escrever e publicar, no ano seguinte sua famosa tese “Estética da Fome”, durante o durante o Seminário Terceiro Mundo e Comunidade Social, realizado em Gênova:

Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entende. Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro é uma vergonha nacional. Ele não come mas tem vergonha de dizer isto; e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnocólor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência. (ROCHA, 2004, p. 65-66).


A tese justificava os motivos que levaram o Cinema Novo a retratar a fome nas telas: tentar elucidar uma realidade vivida pelos brasileiros que os próprios não sabiam a origem, o que acarretava no segundo problema, a violência. Razão pela qual o cangaço foi tema de muitos filmes do movimento. Para esclarecer melhor a “Estética da Fome”, tomemos a introdução de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. No sertão nordestino, Manuel vive com sua esposa Rosa em meio a um ambiente de desolação e sem perspectivas. Após parte da cabeça de gado – que seria partilhada entre ele e seu patrão – morrer no trajeto, Manuel chega a seu destino e não recebe a parte que lhe caberia no acordo. Tomado pela ira, mata o patrão e foge com a mulher. Tendo a consciência de que aquela parte do gado que lhe seria oferecida, poderia sanar os problemas básicos de sua família, Manuel manifesta a cultura da fome sobre e a violência ao matar o patrão. É o instinto violento sobrepondo-se ao desejo de sobreviver. Enquanto isso, o estrangeiro, distante da realidade mostrada na tela, assiste a tais filmes maravilhados com o “surrealismo tropical”, citado por Glauber, assim como os retratados no filme, que, da mesma maneira, não entendem o que se passava consigo próprios. 

“Deus e o Diabo na Terra do Sol” concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1964. Glauber teve como concorrente seu amigo de movimento, Nelson Pereira dos Santos, com a adaptação para o cinema do romance de Guimarães Rosa, “Vida Secas”. Nenhum ganhou, mas ambos foram ovacionados pela crítica.


O próximo filme de Glauber, “Terra em Transe”, lançado em 1967 foi uma dura crítica ao modelo político estabelecido no Brasil na época. Passado na fictícia cidade de El Dourado, em algum lugar da América Latina, o influente jornalista Paulo Martins se vê dividido em apoiar o conservador religioso Porfírio Dias e o progressista Felipe Vieira. Desta situação um perigoso jogo político se instala na cidade. A complexidade da obra atinge níveis estratosféricos, como o diretor Cacá Diegues defende:

Terra em Transe articula ao mesmo tempo análise política e delírio pessoal, inaugurando o tropicalismo como método de abordagem. Para falar desse filme misterioso, inspirado, revolucionário, é preciso lembrar a só tempo James Joyce e Villa-Lobos, Jorge de Lima e Buñuel, desintegração e construção, forma e anarquia [...] De líder, mito intocável, herói da arte nacional, Glauber Rocha se transformou da noite para o dia na grande questão cinematográfica do País. (DIEGUES, 1999, p. 20-21).

Terra em Transe de Glauber Rocha

Terra em Transe realiza uma dura crítica à ditadura militar brasileira e, mesmo após 47 anos de seu lançamento, é possível encontrar, no louco roteiro de Glauber lapsos do modelo de política que ainda perduram no país. Terra em Transe sem dúvida alguma é um filme profético.
Com a década acabando, Glauber lança, em 1969 seu primeiro filme em cores, “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, trazendo de volta o personagem Antonio das Mortes, caçador de cangaceiros, que já havia aparecido em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Na história, acompanhamos Antonio das Mortes, que a chega a uma cidadezinha na região de Jardim das Piranhas, após a notícia de que um cangaceiro, que se denomina a reencarnação de Lampião se instalou no local, juntamente com a sua trupe. O filme é um divisor de águas na carreira do diretor, ao mesmo tempo em que mostra um Brasil industrializado, não deixando de lado suas características costumeiras. A história ambientada em traços de literatura de cordel, as músicas regionais cantadas pelos habitantes do local, a corrupção da alma humana e a luta entre o bem e o mal. Pelo filme, Glauber finalmente ganha o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes.

Antonio das Mortes de Glauber Rocha


Derrocada

A década de 1960 havia acabado. A vitalidade com que os jovens cineastas fundaram o Cinema Novo já não era mais a mesma. O cinema nacional já estava pendendo para outro tipo de cinema e um novo movimento, com propostas estéticas e narrativas distintas do que os cinema novistas propunham. Tratava-se do Cinema Marginal, modelos de um cinema cujas histórias eram contadas de maneira pobre, esdrúxula e absurda. Os maiores expoentes do Cinema Marginal foram Roberto Sgarzela com “O Bandido da Luz Vermelha”, de 1968 e Julio Bressane, com “Matou a Família e Foi ao Cinema”, de 1969. Entretanto, Glauber Rocha comprou briga pela reivindicação dos direitos de criação do movimento, pois em 1972, lançou “Câncer”, filme com aspectos semelhantes aos do Cinema Marginal, mas dado ao seu lançamento tardio em relação à criação do novo movimento que estava colocando o Cinema Marginal para escanteio, obviamente que o cineasta não foi o criador da tendência. Contudo, deve-se levarem conta o ego gritante do diretor, tão comparável ao seu talento e ver uma geração do qual participou se dissolvendo a cada dia que passava.

Entre 1970 e 1971 exilou-se na Itália, onde dirigiu dois filmes: “O Leão de Sete Cabeças” e “Cabeças Cortadas”, ambos trazendo sua ideologia mais marcante: denunciar os problemas enfrentados pelo Terceiro Mundo. Volta ao Brasil em 1972, onde lança “Câncer” e regressou à Itália em 1975, desiludido com seu esquecimento perante o povo brasileiro. No país, filma “Claro”, mistura de documentário, mostrando seu dia-a-dia em Roma e ficção, contando a as aventuras de um pequeno grupo de amigos, também na cidade. Novamente de volta ao Brasil, documentou o velório do amigo de longa data, o pintor Di Cavalcanti, em 1977. Para sua volta ao cinema brasileiro, Glauber prepara uma superprodução. Inicialmente a ser gravada no México, Estados Unidos e Itália, o diretor não consegue financiamentos para o projeto. Decide então manter as filmagens em terras brasileiras. Finalmente em 1980, lança A Idade da Terra, um manifesto cuja história se baseia em recontar o mito cristão no Terceiro Mundo, através dos quatro evangelistas Mateus, Marcos, Lucas e João, que ressuscitam Jesus Cristo em seus próprios corpos, explorando cada problema que açoita o dito Terceiro Mundo. Profético e frenético durante seus 160 minutos, o filme é um grande Brasil escancarado, repleto de cores, gritos e cânticos, é Glauber em sua forma mais pura e genuína.
O filme foi exibido no Festival de Veneza, mas foi duramente criticado, perdendo o Leão de Ouro para o filme “Atlantic City”, de Louis Malle e “Gloria”, de John Cassavetes. Furioso, o diretor sai às ruas da cidade profanando contra o júri do Festival. “É um filme para ser visto e ouvido, não para ser entendido”, disse o diretor em uma entrevista minutos antes da sessão do filme. O público não entendeu, os críticos muito menos e o filme saiu perdendo.

Glauber Rocha morreu em Portugal, no dia 22 de agosto de agosto de 1981, vítima de choque bacteriano resultante de broncopneumonia. Sua partida prematura deixou um imenso vácuo no cinema brasileiro. Seus filmes, entretanto estão vivos para serem vistos revistos e explorados, mostrando um Brasil multifacetado e belíssimo, filmado por um homem que simplesmente amava seu país.


Referências

DIEGUES, Cacá. Cinema brasileiro: ideias e imagens. Rio Grande do Sul: UFRGS, 1999.

RAMOS, Fernão Pessoa (org). História do cinema brasileiro. São Paulo: Art, 1987.

ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

ROCHA, Glauber. Revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1993.

Texto escrito por Geraldo Rocha.

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